CIVILIZAÇÃO
E BARBARIA
Jackson
de Figueiredo
Diante de fatos como os que se passam no México, atualmente, uma coisa, que se
impõe a todo espírito verdadeiramente livre, a todo homem capaz de pensamento
despreconceituoso, é a identificação do princípio civilizador, em meio das múltiplas
forças que como tais se apresentam no cenário do mundo.
Porque
não há charlatão ou bárbaro, não há pérfido ou louco com pruridos de
reformador do gênero humano, que não fale em nome da Civilização, que não
se apresente como seu vingador ou seu
profeta.
O
anarquista mais cínico, o estadista mais desbriado, não propunham outro fim, não
querem outra coisa: a defesa da Civilização, quando não a sua conquista,
custe o que custar. Também o homem de boa fé e o simplesmente ingênuo assim
procede: “A realização de um dado ideal da sociedade humana é o que os
impele. Mas, diz Godofredo Kurth, é quando se tenta dizer em que consiste esse
ideal é que as dissidências aparecem, e com tanto maior violência quanto a
questão é das que apaixonam todo o gênero humano”. E é quando se fica em
face desta questão, como agora, que justamente convém recordar as dificuldades
vencidas pelo grande historiador belga, no seu propósito de determinar, não só
o caráter da civilização ocidental, como no de definir de modo claro e
positivo o conceito de civilização em geral.
Kurth
lembra que em vão os cépticos procuram esquivar-se a tão grave problema,
alegando que uma sociedade perfeita é impossível. Se, de fato, olhada em cada
um dos seus membros, toda sociedade está condenada a uma perpétua imperfeição,
não é menos impositiva a ânsia de conquistar a possível perfeição social,
que consiste somente numa tendência a perfeição absoluta, isto é, a permanência,
em um dado meio, de um princípio de organização que coordene todos os
elementos, ou melhor, que tendo em conta as suas falhas naturais, lhes dê as
condições mais favoráveis ao seu contínuo aperfeiçoamento, o que equivale a
dizer que “não se concebe uma definição exata de civilização sem um prévio
conhecimento da pessoa humana, toda sociedade consistindo apenas, realmente, em
uma reunião de pessoas”.
O
fim da pessoa humana, eis o que há a indagar antes de qualquer indagação
sobre o fim da sociedade, pois é claro que, desde logo, ficará prejudicada
toda ideologia social que contrarie esse fim adequado à essência de cada um
dos elementos componentes de uma dada sociedade.
Ora,
a questão sempre presente há quase dois mil anos é a se o Cristianismo
corresponde ou não ao ideal da civilização quando este seja assim definido:
“A perfeição social, ou, em outros termos, a civilização consiste na forma
da sociedade que ofereça aos seus membros o maior número de facilidades para
atingir o seu fim último”.
Godofredo
Kurth diante desta questão não se limitou, como também outros, a declamar pró
ou contra o Cristianismo. Ninguém mais do que ele ousou aprofundar o espírito
social do paganismo, na sua mais perfeita organização, estudando a concepção
do Império, não só na sua realidade histórica, como no seu princípio
gerador e conseqüentes desenvolvimentos teóricos. E o que ele pôde verificar
foi o seguinte: a Antigüidade “impôs” ao homem que o homem é feito para o
Estado, e quando este foi forçado, como no caso romano, a encarnar-se num só
homem, este homem, onipotente como o próprio Estado, acabou por ser aceito como
uma divindade, regulando, não só as relações exteriores de homem para homem,
mas até as do foro íntimo de cada um, como senhor das consciências, causa e
fim da vida não só externa como interna de cada um dos seus súditos.
E
não se trata aqui de um estado de coisas ideal, somente almejado. Não. O império
realizou-o, e o vulgar dos homens, e o escol da humanidade, a superstição como
a filosofia aceitaram-no de coração alegre, e conscientemente. Platão e Aristóteles
fizeram a sua apologia e o aforismo do maior jurisconsulto da antiguidade –
nota Kurth – formula as conseqüências de tal aceitação, com uma precisão
irrepreensível: “O bel prazer do príncipe tem força de lei, pois que, em
virtude da lei real, que é a fonte da sua autoridade, o povo lhe conferiu e a
ele incorporou todo o conjunto dos seus direitos e dos seus poderes”.
Como
se vê, o que vivifica, se assim pode se dizer, uma tal sociedade é um
materialista tão grosseiro quanto violentamente dogmático. O fim do homem está
em si mesmo, e quando a sociedade – composto de homens – é forçada a
resumir-se num só homem ou num grupo de homens, esse homem ou esses homens se
apresentam como fim de toda a atividade humana. Sejam quais forem os cultos, que
nasçam da necessidade iniludível, de relação com o sobrenatural, a verdade
é que o Estado é a única força diretora das conseqüências, e que o Estado
representa o “deus presente e corporal” da antiga fé.
Estamos
aqui - diz Kurth – no coração do cezarismo e em face da última palavra da
política pagã.
Mas,
pode haver coisa mais clara do que o absurdo de uma tal concepção da vida
humana? Poderá imaginar-se maior rebaixamento da dignidade humana que essa
escravização do homem ao homem, que essa imitação das suas aspirações de
felicidade?
Sabe-se
o que resultou da realização desse ideal no seio do “tipo mais completo da
sociedade pagã”: desrespeitadas todas as tendências naturais do homem,
aquele que fora elevado à categoria divina, desceu quase sempre abaixo dos
animais, pela grosseria do instinto de mando, absolutamente sem controle”, e
os governados, reduzidos a meros instrumentos do prazer do Príncipe, nem
felizes nem mesmo unidos, como haviam esperado, mas divididos e lançados uns
contra os outros, e afundados todos na objeção do temor da perpétua
incerteza.
É
a essa hora que surge o Cristianismo. Veremos o que ele trouxe ao mundo, como
força de reintegração do ser humano na sua própria natureza. Veremos depois
o que trouxe o Estado moderno, que quer substituir o Cristianismo na direção
dos homens.
E
há de se ver de que lado está a civilização, de que lado está a barbárie,
na luta que, com maior ou menor brutalidade, atualmente se trava, em quase toda
a parte na face do mundo.
(Gazeta de notícias, 11 de agosto de 1926).
Artigo anterior | Volta ao índice | Artigo seguinte |